sexta-feira, 5 de maio de 2017


Crônica - 

O bêbado e o quadrinhista

Foi em 1990. Eu tinha um estúdio na Praça Júlio de Mesquita, perto do Mappin São João, grande magazine que não existe mais faz décadas.

Era uma manhã muito fria. Eu estava acompanhado do talentoso paraense Bené Nascimento, hoje famoso, por desenhar super-heróis, assinando Joe Bennett. À época ele contava com 22 anos. Parecia um índio gigante, com seus quase dois metros de altura. Era fisiculturista. Eu, franzino, com quase 1,70 m, se usar salto carrapeta. Estranhando o fato dele ficar assustado com o povo sinistro de nossa Pauliceia. Bené tentava morar com a mãe, no bairro do Tatuapé. Ela se separara do pai dele fazia poucos anos.

Daí fomos atravessando a avenida São João.  Ele desconfiado, olhando para os lados, com um tampinha falante do lado. Entramos num bar perto da Praça da República, na rua lateral, a rua dos Andradas, junto ao Edifício Andraus. Eu contava pra ele que aquele edifício era o que pegou fogo, nos anos 70, em um incêndio histórico, e eu estava dentro do prédio, no tal dia fatal, e não sabia que o prédio estava em chamas - mas essa é outra história. 

Quando estávamos entrando na lanchonete, demos de cara com um mendigo, que arregalou os olhos, ao me ver e saiu correndo em seguida. Eu o reconheci no ato. E ele a mim também. Era o Orlando. Um antigo desenhista de animação e ilustrador dos bons. Trabalhamos juntos em uma agência de publicidade, dez anos antes dessa topada. Ele trabalhara muito antes, na conceituada Linx Film, empresa que realizou desenhos animados pioneiros para propaganda, na década de 1960, de onde saíram nomes como Ruy Perotti, Ely Barbosa, Walbercy Camargo e Daniel Messias.

Meu tio Silas do Amaral, sobrinho neto da Tarcíla, do Modernismo, trabalhou lá, como aprendiz, junto de outro amigo meu, Davilson Rodrigues, a pessoa que me apresentou a esse artista que saiu correndo, o Orlando.

Lembro que eu fiquei paralisado. Bené, depois, repetiu algumas vezes, que eu fiquei branco. Pálido como um vampiro. Lívido mesmo. Espantado. E o Orlando assustadíssimo. Pasmo. Mas eu saíra na direção em que o Orlando havia rumado. Não o encontrei, nunca mais o vi. E, naquela época, trabalhando nas Folhas eu circulava bastante por ali.

Bené ficou muito chocado ao saber que o Orlando havia sido um desenhista talentoso. E, aquele triste momento histórico o influenciou em sua decisão de retornar para sua Ananindeua. Cidade vizinha a Belém, no Pará. Onde reside até hoje. Então, indo se dedicar ao desenho de propaganda, arquitetura.e quadrinhos, só como passatempo, quando possível.

Porém, o destino o fez trilhar os caminhos de seus anseios infanto-juvenis, os gibis, porque dois anos depois, quando a Arte & Comics me pediu amostras de artistas brasileiros para mostrar a um agente americano, ele foi minha recomendação primeira. Depois, o paraibano Deodato Filho, que desenhava fanzines na época. Mais José Pimentel, um artista pernambucano que estreara na Grafipar. E, ainda, um rapaz do Rio Grande do Sul, Henrique Kipper, que trabalhava ao meu lado no jornal Folha da Tarde. Sendo que Bennett foi o que mais se destacou na pequena editora Now Comics. 

Ao sair da lanchonete, onde mal conseguimos engolir um café queima goela, devido aquele desolador encontro com o Orlando, comentei com Bené que ele havia sido casado com uma mulher lindíssima, mas que ela ficou doente e foi definhando, até falecer, de Leucemia, se não me engano. Com a inevitável morte da amada, meu antigo parceiro, que ficava na prancheta, se entregou a cachaça. O que, provavelmente o fez ir morar na rua. 

Ainda hoje, quando relembro aquele triste instante, me vem a memória o angustiado olhar do Orlando. As muitas rugas avermelhadas contornando seus verdes olhos, lacrimejantes e saltados. Seu aspecto pálido e profundamente desesperançados. 

Para mim ficou uma experiência forte. Que me leva a auxiliar e conversar com moradores de rua. Mesmo os malucos. Oferecendo comida ou roupas. Mas, o que eles sempre pedem, com muita veemência mesmo é a tal caninha, para aplacar as suas inquietudes de alma.


( - Franco de Rosa – 5 – 5 – 2017 -) 

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